Vende-se casa com tudo dentro

Um conto inspirado em uma história surreal

Débora Rubin
3 min readDec 2, 2020

A maioria das pessoas fica feliz quando se lembra da infância. Biga não faz parte dessa maioria. Quando lembra de si mesma criança, Biga busca alguma ocupação para logo espanar o pensamento antes que ele vire sentimento. Ela não gosta, por exemplo, de lembrar que quando saía de casa já ouvia as crianças da rua cantarolando: Biga bigoduda, briguenta e barriguda. Biga não era bigoduda, ao menos não aos sete anos de idade, e menos ainda barriguda, menina seca de pernas finas que era. A culpa era daquele apelido horroroso que ela ganhara ainda bebê. E das crianças, claro, que são naturalmente maldosas.

Poucas coisas a deprimem mais que a casa onde passou seus primeiros 17 anos. Gostaria de poder demolir aquelas paredes mofadas de tristeza, desejaria não mais recordar aquela morada onde passou os piores anos de sua vida, onde cada maçaneta e dobradiça respiram a raiva que seus pais nutriam um pelo outro, onde cada espelho cheio de pequenas marcas de ferrugem nos cantos reproduzem a imagem da Biga abandonada. Era uma casa onde não havia afeto.

É difícil esquecer um lugar quando ele ainda faz parte da vida de uma pessoa e aquela casa habitava a cabeça da Biga porque seu pai, aos 79 anos, ainda morava ali, do mesmo jeito que a casa havia ficado desde que sua mãe tinha partido. O pai de Biga não havia movido um móvel de lugar, um quadro, não pintara uma parede. A mãe partiu porque não aguentou mais viver ao lado de homem tão egoísta e violento. Pouco tempo depois, a mãe de Biga morreu de tristeza. E o homem foi ficando cada vez mais enraizado naquela sala escura, com suas certezas absolutas, com suas birras de velho, com suas contas atrasadas.

- Pai, qualquer dia essa casa vai cair sobre a sua cabeça, dizia Biga na visita mensal que fazia à casa assombrada de sua infância. O pai reagia com um resmungo já conhecido. Biga deixava as compras e ia embora.

“Poucas coisas a deprimem mais que a casa onde passou seus primeiros 17 anos. Era uma casa onde não havia afeto”. (Photo by Anita Jankovic on Unsplash)

Um dia, quando Biga estava com as gêmeas cuidando das peônias no quintal de sua casa, uma casa simples, mas cheia de cores e pequenas alegrias em forma de penduricalhos, recebeu uma ligação de um vizinho de seu pai. Como fazia anos que ele não pagava IPTU, havia um fiscal da prefeitura em sua porta com uma ação de cobrança. Biga deixou as gêmeas com o marido e correu para o outro lado da cidade. Quando chegou à casa triste de sua infância, encontrou o pai deitado no chão da sala, amarrado ao pé do sofá de estofado furado, comprado em 1986. Em pé, ao lado, um fiscal com cara de cansaço. Vamos, meu senhor, não tenho o dia todo.

Biga chamou o fiscal de canto, inteirou-se da situação, pediu o valor devido. Perguntou em quantas vezes aquele valor poderia ser parcelado, fez contas, ligou para o marido, falou com a gêmea número um, sim, meu amor, mamãe já vai voltar, abriu o aplicativo do banco, checou a aplicação, ligou de novo para o marido, ouviu a gêmea número dois chorar ao fundo, desligou o telefone e tomou uma decisão.

- Pai, eu vou pagar essa conta, mas vou vender essa casa e me restituir desse valor, disse, com muita calma, porque Biga passou a vida evitando falas nervosas e gestos bruscos porque poderia ser qualquer coisa na vida, menos parecida com o pai.

E o pai disse o que sempre dizia:

- Só saio dessa casa morto!

Biga fez o anúncio nas imobiliárias, venderia aquela casa com tudo dentro, inclusive o pai. Estava cansada daquele velho birrento e da casa que assombrava suas memórias. Estava cansada de tudo ter que ser do jeito que ele queria. Os novos moradores que dessem um jeito. Daria um belo desconto pelo incômodo. E foi assim que Biga resolveu três problemas de uma vez só: o pai, a casa sem graça e as lembranças de uma infância sem sabor.

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