Velozes, furiosos e solitários

Débora Rubin
4 min readJul 20, 2022

Ter um filho descortina muitas coisas, inclusive a solidão a três

Ela saiu de casa com os olhos aguados, o rosto vermelho, dizendo que iria se isolar um pouco para melhorar. Eu ofereci a cama de visita, que fica no escritório, porque achei que naquele momento era melhor ela estar perto de alguém. Daí ela soltou: “Melhor não, vocês estão sempre correndo e estressados”. Foi. Nunca mais apareceu. Parece que está melhor, não sei. Só fez algumas chamadas de vídeo depois. Na semana seguinte, a babá da minha filha trouxe o recado da vizinha do quarto andar: ela mandou dizer que você é uma bruxa. Tudo porque não fui buscar o pãozinho de Santo Antônio que ela tinha guardado para mim. Eu me esqueci completamente…

As duas estão enfrentando problemas, precisam de ajuda, e eu adoraria ajudar mais. Eu adoro ajudar, é quase um vício. Faço campanhas para arrecadar dinheiro para ONGs, jovens sem recursos, pessoas com fome. Estou sempre tentando ajudar favelas que pegam fogo, cidades que ficam submersas nas chuvas de verão, amigos com dificuldades financeiras. Para além das questões financeiras, estou sempre à disposição. Tagarela, sei também ouvir bem. Mas, agora, quem precisa de ajuda sou eu. E, puxa, como é difícil receber. Eu até tentei pedir, porque dizem que a gente não sabe pedir, mas você ouve um não aqui e outro ali e aí desiste.

Hora de partir | Photo by Dino Reichmuth on Unsplash

Faz um ano e dois meses que eu não sei o que é dormir oito horas seguidas. Minha filha já nem acorda tanto, dorme muito melhor, mas tem dias que eu acordo com uma tossidinha dela e já não durmo mais. Meu corpo se acostumou a estar sempre alerta e me meteu numa insônia crônica que nem na crise de pânico eu vivi (bom, lá eu tinha o Rivrotril para me ajudar).

Mas é preciso seguir a vida e trabalhar e ganhar dinheiro para pagar as contas. E eu passo os dias como um zumbi tentando entender o tema do trabalho da vez, pesco na frente do computador, quero encher a cara de café, mas evito porque pode me atrapalhar à noite. Como muito doce. Engordo. O sistema de recompensa chora migalhas. E não posso reclamar porque temos sorte — temos trabalho no Brasil de Bolsonaro. Temos dinheiro para pagar as contas e para pagar a babá que só está aqui porque eu preciso trabalhar para pagar as contas, o que inclui a babá que… baita ciclo doido.

É isso que a minha querida lá do começo não entende. Manter essa estrutura mínima custa dinheiro, ter filho custa dinheiro, e por isso estamos sempre correndo e estressados. Por isso esqueço do mimo da vizinha (que bruxa!). Talvez fosse diferente se a gente tivesse alguma ajuda. Delas, inclusive.

Outro dia fui a uma consulta com minha ginecologista. O filho dela tem um mês a menos que minha filha. Dois dias da semana ele fica com uma avó. Outros dois dias, com a outra avó. A mãe dela ainda insiste para ela deixar o netinho aos finais de semana. Já uma amiga me contou que a mãe dela fica toda sexta-feira com suas filhas para ela e o marido namorarem! Que luxo delicinha. Contei para o meu marido e choramos juntos. Mas sei que elas são exceção. A maioria dos pais estão na roça como nós. Como já escrevi antes por aqui, não existem mais as aldeias. Num sábado, com os dois virados e muito nervosos, fizemos a única coisa que era possível: contratamos uma babá folguista para descansarmos (e dá-lhe pegar mais frila porque a ajuda possível é a paga).

A única pessoa até hoje a me oferecer uma ajuda de verdade — “vão lá almoçar/dormir/passear/tomar banho com calma que eu cuido dela” — foi a minha irmã mais velha. Ela e meu cunhado cuidam da pequena sem medo e sem economia. Só que eles moram longe. Daí que tomamos uma decisão radical: vamos para perto deles. Estamos procurando uma casinha no interior porque São Paulo já não nos atende — e, de novo, que privilégio, podemos trabalhar remoto. Tudo pesou: a cidade caótica, o centro barulhento, a pandemia eterna, a falta de horizonte; nada disso combina com uma menina pequena que começa a explorar o mundo com seus olhinhos curiosos e pezinhos cambaleantes. Teve também o sumiço dos amigos. Somos três, mas nunca estivemos tão sós. Lá, teremos uma pequenina, mas afetiva, rede de apoio.

Nos últimos dias fomos bombardeados com perguntas: mas vocês vão conseguir morar no interior? Não vão sentir saudade de São Paulo? Pode ser, talvez a gente volte antes do que imaginamos. Só tentando para saber. Mas é o movimento necessário. Minha filha merece uma vida mais acolhedora — e nós também.

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