Para a menina que dorme no meu colo

Débora Rubin
7 min readJul 27, 2021

Minha filha,

Em primeiro lugar, me desculpe a demora. Eu tava ocupada demais sentindo medo da maternidade. Quando enfim me senti pronta, depois de dois anos daquela crise de pânico, pânico da vida, de simplesmente existir, alguém veio para a minha barriga e logo se foi. Parece que também sentiu pânico de existir. Dali em diante nada aconteceu e eu e seu pai dissemos ok, a vida sem filhos é boa, e seguimos. E então você veio, em meio a uma pandemia nunca antes vista pelas gerações que aqui estão. Foi a melhor notícia da longa quarentena que ainda nos tranca em casa, um ano e meio depois.

Mas, sabe, não era só medo da maternidade. Era também dúvida sobre que caminhos seguir na vida que, ao que tudo indica, é mesmo a única. Ser mãe nunca foi uma certeza visceral, era mais uma condição inerente ao fato de eu ter nascido mulher, uma condição mais social e dos outros que biológica e minha. Parecia meio óbvio que em algum momento isso ia acontecer, mas a vida adulta foi passando e eu fui adiando, deixando para depois. Namorei, namorei, juntei, separei, me apaixonei pela pessoa errada (sobe o som!) e aí conheci seu pai. E seu pai é tão naturalmente um encantador de bebês e um encantado por infantes que eu me apaixonei por ele e pela ideia de ser mãe de um filho dele. Parecia a pessoa certa para tamanha jornada. Ainda assim, passamos dez anos juntos sem você. E curtimos muito.

Seu pai, esse cara… (Foto: Isabela Barros)

Porque além de namorar eu trabalhei, trabalhei, fui mudando de ideia em relação à vida profissional (aos 20 eu achava até divertido entrar madrugada adentro fechando revista, aos 30 eu já estava cansada de redação e aos 40, puxa, não sei bem o que fazer), e também viajei um pouco, da Nova Zelândia à Ilha de Marajó, de Cuba ao Pantanal, e passei muitas noites vendo filmes e séries com seu pai, um dos nossos passatempos favoritos antes de você chegar. A vida era leve, livre e solta. Éramos tios, e ser tio é uma coisa maravilhosa porque quando você cansa é só devolver a ferinha para os pais. E é um amor figadal igual de filho — renal, eu diria, pois daria meu rim para eles, se precisasse.

Filho não tem devolução. A partir do momento que me entregaram você na maternidade, depois de um parto difícil para nós duas, eu soube que a vida nunca mais seria a mesma. Tudo o que veio em seguida foi o oposto da gravidez gostosa, tranquila demais para uma gestação tardia (geriátrica, dizem). O seu primeiro mês foi uma das fases mais difíceis da minha vida — quantas vezes eu não me sentei e chorei de desespero, com você chorando no meu peito.

Plena em minha gestação geriátrica (Foto: Olívia Tomazela)

Nunca deixei de tomar banho nem de lavar o cabelo, como relatam muitas puérperas, mas fiquei mais de mês saindo com shampoo na cabeça, sem conseguir enxaguar direito, porque te ouvia chorar e disparava em sua direção. Uma vez saí molhada, de toalha, para te dar o peito. Disseram que ia melhorar, eu respirei fundo. E melhorou. Está melhorando. A minha sorte é ter seu pai comigo. É mesmo a pessoa certa para essa jornada.

Nesse tempo contigo eu já entendi que filho é tudo o que diziam: um amor absurdo, e um trabalho 24x7 cuja única remuneração é o sorriso safado que você dá na troca da fralda da madrugada ou da manhã. Ri da nossa cara de trouxa, de sono, de exaustão. Como diz seu pai, cada sorriso desse aumenta um pouco a carga da nossa bateria.

De quando te levei para ver o mar (Foto: Papai).

Dizem que filho biológico também demanda um amor que se constrói aos poucos. Eu te amei desde a primeira vez que ouvi seu coração bater dentro da barriga. E eu alisei tanto essa barriga, filha. Passava o seu sabonete de bebê na barrigona e dizia que estava te dando banho. A gente conversava nas madrugadas, você se mexia ou soluçava. Te levei para ver o mar na cidade do papai, era você no meu útero e eu no grande útero do planeta. Nós duas flutuando nas águas. Te imaginei com muitas caras, sons e comportamentos.

O filho fora da barriga é o fim das expectativas, é o tapa na cara da realidade. E aí começa uma nova etapa desse amor que é natural, mas que também se constrói. Um amor que às vezes vira raiva e vontade de sair andando e dizendo “tenho nada a ver com isso aí, não”. Que quando o choro não cessa de forma alguma, e aquele agudo entra no nosso cérebro de tal forma que parece que a gente escuta até quando o filho não está chorando, a gente perde a paciência, fala grosso e logo se arrepende. Como brigar com um ser humaninho tão pequeno e tão incomodado com a vida extrauterina? Que tem que aprender tudo do zero, a sugar o leite, a dormir, a soltar um mero pumzinho.

Pum. Como não bastasse o desafio por si só, aparentemente você veio premiada com uma alergia à proteína do leite da vaca. E aí que suas cólicas são mais fortes que a de outros recém-nascidos, e seus vômitos mais frequentes. E se tem uma coisa que eu já aprendi nesse curto tempo como mãe é que não tem coisa mais angustiante que ver filho sofrer, dá vontade de arrancar a dor com as mãos. É melhor me acostumar: serão muitas as dores. Das da barriga às da alma.

Só um filho para me fazer entrar em uma dieta. Só você, filha, para me fazer ficar sem comer manteiga. Manteiga! Eu ainda tenho minhas dúvidas se você tem mesmo essa alergia ou se caímos no conto da indústria alimentícia que quer vender leite especial, caro, e ganhar muito dinheiro via SUS. Na dúvida, me sacrifico. Porque toda mãe é meio polvo e vai abrindo mão de si pelo filho. E mesmo assim você parece continuar melhor com fórmula que com meu peito (goddam indústria alimentícia…).

Te manter quentinha, te manter alimentada, te manter limpa, te manter amada

Tem ainda outro adendo que quero te contar nessa carta, que é só a primeira de tantas que ainda vou te escrever. Como já mencionei , tem uma pandemia lá fora. Ser mãe e ser bebê na pandemia é algo peculiar. Pedir ajuda externa é correr risco, ficar sem ajuda é cair em desespero. Pedimos ajuda e recebemos muita, e muito carinho, mas você, como outros bebês que nasceram nessa época, não recebeu visita na maternidade e poucos vieram em casa. É até bom, dado que você se irrita com muitas vozes e muita gente falando, mas é estranho pensar que muita gente que a gente ama só vai te conhecer maiorzinha. Quase ninguém sequer me viu grávida.

Selfie no hospital, antes de começar o trabalho de parto: uma das últimas fotos antes do começo da segunda metade da vida

Além do coronavírus, que se reinventa toda hora em novas variantes, tem o frio. É um dos invernos mais rigorosos que já passamos em São Paulo, e te manter quentinha é uma luta diária como te alimentar e te manter limpa. Dar seu banho nesse frio é de partir o coração, seu beicinho treme e seus braços ficam roxinhos, mesmo com o aquecedor ligado. A conta de luz, aliás, veio bem mais cara porque tem o frio e tem também o racionamento de água. E tem o aumento da conta porque tem o governo atual, mas não quero terminar esse texto falando de algo tão vil.

Essa carta foi escrita em doses tão pequenas e espaçadas que, ao terminá-la, você já tem mais de dois meses e mais de quatro quilos. Seu choro de dor agora contém gritinhos; em compensação, você sorri cada vez mais. Não gosta de dormir de dia ainda, a não ser que seja no colo. E haja colo. E eu nunca me imaginei tão apaixonada pela função de dar colo, de dar amparo, peito e afeto para um ser tão pequeno.

A maternidade é realmente assustadora e deliciosa, é um conflito — quiçá eterno — de sentimentos. Feliz por ter demorado tanto a te ter, porque só agora faz sentido. Foram 42 anos muito bem vividos. Que venham pelo menos mais 42, ainda melhores, ao seu lado.

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