Onde mora a minha aldeia?

Para uma vila cuidar da nossa criança, a gente precisa cuidar da vila

Débora Rubin
7 min readDec 8, 2021

Uma das frases mais repetidas por quem acaba de ter filho e por educadores é aquele tal ditado africano que diz que é preciso uma vila para cuidar de uma criança (“It takes a village to raise a child”). Bom, como mãe neófita, posso confirmar que é a mais pura verdade. Tem dias, como esse em que escrevo, em que minha filha acordou às 3h30 e não dormiu mais, que é preciso uma terceira pessoa para salvar pai e mãe. Temos ajuda paga, vulgo babá, mas ela só chega às 10h e das 3h30 até as 10h nós choramos, brigamos, suamos, revezamos e só nos exaurimos mais.

A tal da vila ganhou um nome mais contemporâneo: rede de apoio. Recentemente, eu mandei instalar uma rede de proteção nas janelas do apartamento e fiz um story zoando: a única rede de apoio que temos de fato. Tava zoando, mas tava falando sério. Afinal, onde mora a minha aldeia? Eu sou de São Paulo, mas minha mãe e minhas irmãs foram morar no interior recentemente. Sobrou só meu pai, que não é exatamente um apoio — perto dos 80, logo mais ele que vai precisar de apoio. Meu marido é da Bahia e sua família está toda espalhada Brasil afora.

A única rede de apoio é a de proteção nas janelas

Os vizinhos são muito simpáticos, alguns trazem bolo e comidinhas, mas ninguém nunca veio se oferecer para segurar um pouco a bebê chorona para descansarmos um tiquinho. E nesse prédio de paredes finas, eles sabem bem o que passamos nos primeiros três meses de cólica e noites em claro. A vizinha que mais me entende e é solidária está passando pelo mesmo que eu, com um filho quase um ano mais velho que a minha. E ela teve menos ajuda ainda que eu no começo, o nebuloso puerpério, quando pedi pra minha mãe e irmã mais nova virem, e paguei passagem para a minha sogra vir na sequência.

Mais tarde, passei quarenta dias na chácara da minha mãe para ter essa ajuda in loco. Se a ajuda não vem até a gente, a gente vai até ela. Lá, teve um dia de choro descontrolado que eu e André não sabíamos mais o que fazer, e minha mãe e minha irmã se revezaram entre elas até a menina acalmar. Às vezes são necessários quatro. Ou cinco. Cheguei a cogitar alugar a chácara ao lado e morar os primeiros anos da vida da minha filha lá, mas o plano não é factível. Ao menos não agora.

Nossa solução foi contratar alguém três vezes por semana, o que dá para pagar no momento, para eu voltar a trabalhar. Tem funcionado, mas há dias, madrugadas, finais de semana em que tudo é muito solitário. Fora o bagaço que é trabalhar quando a noite é passada em claro. Haja café e chocolate. Fico pensando nas mães solo, nas mães com mais filhos, nas mães que precisam sair para ganhar o sustento da casa e não têm com quem deixar a cria. Sou uma privilegiada e sei que não posso reclamar. Mas como não reclamar quando a rotina é mais exaustão que diversão?

Recebi esses dias (dessa minha vizinha que também é mãe) um vídeo ótimo da Carolina Burgo dizendo que uma mãe calada é poesia, porque ninguém quer uma mãe que reclama. Porque mãe que reclama incomoda muita gente, né? Mãe que reclama é vista como um perigo, um alerta de que algo vai muito errado na nossa sociedade. É uma sociedade que desaprendeu a viver em aldeias, que se construiu cada um no seu quadrado, cuidando do seu umbigo e vigiando o erro alheio. É uma sociedade não solidária, não amorosa, não gregária.

Me lembro da minha irmã reclamando da falta de apoio quando ela tinha filhos pequenos. E olha que, na vez dela, todos morávamos aqui na capital. Mesmo assim ela vivia exausta, mesmo assim ela pagava babá e faxineira, mesmo assim volta e meia ela não tinha quem buscasse a filha doente na escola. Ela trabalhava dois milhões de horas e mal via os filhos. Um dia ela adoeceu, mandou tudo às favas e foi viver uma vida mais simples no interior (e hoje é punida por essa escolha ao não conseguir voltar para o mercado de trabalho — mas isso já é outro texto).

Eu passei uma madrugada segurando o filho recém-nascido dela, meu afilhado, no auge das cólicas dele, para ela descansar uma noite. Minha mãe passou outra, minha outra irmã mais outra. E nunca mais voltamos (só a título de curiosidade, em seis meses ninguém passou uma madrugada inteira com a minha filha além de nós). Ela sempre conta essa história para ilustrar o que passou, da pouca ajuda que teve. Minha amiga e comadre sempre lembra, muito feliz, que um dia eu fui lá e lavei uma louça para ela no puerpério do meu outro afilhado. Uma. Louça. Uma. Vez. Um nada.

E eu sou autônoma, trabalho de casa desde 2012 (não precisei de pandemia para isso). Porque era tão difícil estar com minha irmã e com minha amiga/comadre em momentos tão decisivos e rápidos da vida delas? O que era tão importante naquele momento? Eu não sei. Mas eu sempre tinha alguma coisa para fazer. Correr atrás dos jobs, da grana, fazer a ioga e a academia para não enlouquecer de só ir atrás dos jobs, da grana. Morrer de ver Netflix no final do dia para anestesiar. Quando meu sobrinho nasceu, eu tava me matando de trabalhar para fazer uma reserva financeira. Um ano depois, quando meu afilhado nasceu, eu tava gastando todo esse dinheiro em psiquiatra e remédio porque tive uma crise de pânico de tanto trabalhar.

Vida besta, né? Roubando de Amália Rodrigues, estranha forma de vida essa que inventamos. Ou melhor, que o capitalismo inventou para a gente: sempre ocupados, sempre no corre, vivendo para pagar contas. Porque, sendo autônoma, não tenho garantia alguma de dinheiro pingando na conta, e o desespero sempre bate. Em uma cidade como São Paulo, com distâncias largas e trânsitos intransponíveis, o tempo é curto e o corre é ainda mais aflitivo.

Uma vida, muitas mãos/Photo by Luana Azevedo on Unsplash

Não quero dizer que eu tinha que ter largado tudo e ficado só cuidando de sobrinho. Que eu tinha que colocar essa ajuda como mais uma obrigação na minha agenda para ticar no final do dia. Tampouco acho que minha mãe tenha a obrigação de abrir mão de sua deliciosa vida de aposentada para cuidar de neto. Não é sobre obrigação, é sobre estar próximo, presente, disponível. E é também sobre troca. Eu poderia muito ter me beneficiado da energia dos bebês naquele momento em que eu estava colapsando de ansiedade.

Sempre digo que rede de apoio, para mim, é um estado de bem-estar social. É um estado que permita uma mãe ser mãe, já que as aldeias foram dissolvidas. Um estado que garanta casa, comida, renda, creche. Que acolha as pessoas que geram pessoas. Mas a gente vive num estado de bem-estar liberal onde poucos ganham muito, muitos trabalham demais e mães são a parte mais frágil dessa engrenagem. É difícil lutar contra esse monstrengo.

Quando não há estado de bem-estar social nem aldeia, como a gente faz? Quem pode, paga. Quem não pode, faz o que pode. Cruel. Observando uma pessoa muito querida que mora na favela do meu bairro, percebo que, pelas razões erradas, as mulheres pobres acabam tendo mais aldeia que as de classe média. Porque ao estarem descobertas de tudo, de estado e de renda para ter ajuda paga, umas cuidam dos filhos das outras. Ela mesma, cinco filhos já grandes, está sempre cuidando de algum bebê ou criança pequena. Nem todas têm essa rede, claro, mas é mais comum achar aldeia na favela que no condomínio de muro alto.

Enquanto não há outra forma de viver, o que a gente pode fazer? Não tenho as respostas, mas acho que uma ideia é tentar dar uma banana para essa forma tão egoísta de vida e cuidar um pouco mais das nossas vilas. E isso significa olhar o todo; cuidar da árvore, da calçada, do lixo que a gente gera, do idoso sem ninguém, do morador de rua com fome, lavar a louça de uma puérpera, acalantar o bebê de uma mãe que não dorme há dias. É difícil, claro, tá todo mundo correndo atrás… mas ajudar-nos uns aos outros não é um ato bonitinho e altruísta, é rebeldia, é lutar contra o sistema. É sobrevivência da espécie.

PS: Sempre que puder, ajude uma mãe. Essa exaustão toda não é normal nem romântica, mas solitária e tortuosa.

PS2: Depois que postei o texto, lembrei de três pontos importantes. O primeiro é sobre as redes virtuais, os famosos grupos de mães e afins. Com a vida cada vez mais virtualizada, natural que a rede de apoio cresça nesse campo também. São maravilhosas, têm seu valor, mas não substituem o abraço. Falando em abraço, faltou dizer o óbvio: em tempos pandêmicos, ainda mais difícil pedir/ter ajuda.

Por fim, para eu não parecer toda reclamação e ingratidão, faltou fazer agradecimentos especiais para além da minha mãe, irmã caçula e sogra. Teve ainda a tia do André, Alice, que passou uma semana aqui fazendo nosso almoço — gratidão eterna! Minha amiga Júlia, que mandou nossa janta quando voltamos da maternidade (nunca esqueceremos!), a Lilika, que mandou um combo de sopa no auge do frio e a Mel, que trouxe delícias sem leite (por causa da alergia da pequena eu cortei todo o laticínios) e fez uma sopa maravilhosa num dia de muito chororô da baby. Fora as amigas que vieram dar um colo, pra ela e pra mim, e os muitos, muitos presentes que ainda chegam ❤

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