O futuro de Mariana

Débora Rubin
3 min readJan 25, 2023

Um país que abandona suas crianças não tem amanhã possível

Isaac pega a velha mochila do Luccas Neto e sai feliz da vida com ela pendurada nas costas. A irmã mais nova, Mariana, repete seus movimentos com sua mochila de princesas empoeiradas. Chegou mais uma sacola imensa de doação e as crianças fazem festa. Sigo os irmãos pelo caminho de terra batida até a porta do casebre; Joana, a mãe, nos convida a entrar. É preciso abaixar um pouco, mesmo eu com meu 1,58m, para passar pela porta de entrada. E enfrentar uma nuvem de insetos.

O banheiro fica dentro da cozinha, a cozinha fica dentro da sala, a sala é um quarto. Tem mais um quarto logo ali atrás, em algum lugar que já não enxergo. Onde dormem as sete pessoas da família? Não consigo encaixar tanta gente em pouco espaço. Matemática ali é conta que não fecha: uma mãe, seis filhos, três pais ausentes— um morreu, o outro foi preso, o terceiro sumiu. Auxílio Brasil, do governo federal, e o auxílio aluguel da prefeitura é toda a renda possível.

O único homem da família ali por perto, que poderia ser um provedor e protetor da família, é seu maior algoz. Usa a mão de obra escrava das crianças, cobra aluguel de Joana e abusa sexualmente, sistematicamente, há anos, das mais velhas. Os três filhos mais velhos de Joana têm olhos opacos e desesperançados. Os três mais novos têm olhinhos curiosos e brilhantes. Mariana sorri até de boca fechada.

Mariana usa um uniforme surrado de uma escola particular da cidade e tem uma franjinha curtinha que a faz parecer aquelas meninas modernas, magrelas, cheias de tatuagem da Vila Madalena. Ela me segue com o olhar. A irmã mais velha baixa os olhos toda vez que alguém fala com ela.

Estamos ali para tentar, de alguma forma, tirar a família do local e levar para bem longe do algoz. Somos um pequeno grupo de “white saviors”, versão brasileira, cheios de culpa, que nos unimos para (tentar) ajudar quem precisa na cidade. A zona rural esconde os problemas mais complexos, as vulnerabilidades em efeito cascata, a miséria que todo mundo ignora.

É mais fácil chegar aparelhamento do estado — assistência social, psicólogo, agente de saúde — e uma infinidade de ONGs nas favelas das cidades grandes que na zona rural das cidades pequenas. Claro que lá a demanda é bem maior. Aqui, porém, não chega ninguém.

Saio da casa em busca de um respiro. Isaac e Mariana olham longe, rindo, fazendo troça, ainda com as mochilas “novas” nas costas.

— Tia, a gente tá brincando de magia!

— Que legal! Como é isso?

— A gente olha pro bambu se mexendo e finge que foi o poder da nossa mente que fez ele se mexer!

— Que incrível!

Minha vontade é pegar a pequena Mariana nos braços e sair correndo dali, antes que ela se torne mais uma vítima do parente serpente.

Nossa trupe decide algumas coisas com Joana, quase sempre sussurrando para que não sejamos ouvidos pelo incômodo vizinho da casa colada à dela, e segue de volta para a cidade.

Chego em casa e não tenho tempo de chorar porque estou atrasada para a reunião na escolinha da minha filha e vai car um pé d’água daqueles de verão. É a primeira reunião da primeira escolinha da minha única filha. Faço parte da pequena casta da cidade que pode pagar uma escola particular. E a escola daqui é ridiculamente mais barata que as escolas da Ivy League paulistana. Existe o privilégio e existe o privilégio do privilégio.

Na reunião, a maior preocupação dos pais é se o lanche será coletivo ou individual. Se vai ter açúcar antes da hora indicada para os bebês. Meu pensamento volta até Mariana. Será que ela vai conseguir escapar da sina dos irmãos mais velhos? Vai conseguir manter aquele brilho no olhar na adolescência? Vai ser feliz? Como será o futuro de Mariana?

Sinto raiva do país que vivo. Do sistema capitalista. Da ganância, da desigualdade, do desvio de verba, do patriarcado, da balela sobre a importância de se investir em educação e esse dia nunca chegar.

Não consigo ver futuro bom para quem tem de presente mochila velha que já foi usada por criança rica, chinelo puído e parente abusivo. Desejo para Mariana que ao menos ela siga brincando de magia, de mover bambus com a mente sem que ninguém atravesse sua infância.

*Nomes foram trocados e histórias foram misturadas por questões legais e de segurança

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