Meu avô Lázaro

Débora Rubin
7 min readMar 29, 2023

Tudo o que sei sobre ele é que se matou num 7 de Setembro, deixando de legado um vazio e uma tristeza fundamental que ultrapassam gerações

Não conheci meu avô paterno, o Lázaro. E é até estranho chamá-lo de avô, já que ele interrompeu a vida aos 36 anos, quando mal tinha cumprido o papel de pai. Era 1952, meu pai tinha oito anos. Minha mãe só nasceria três anos depois. A história que me contaram, e o sujeito da oração não é meu pai, é que ele se enforcou dentro de casa enquanto a família tinha saído para ver a parada patriota. Quando voltaram, deram de cara com a cena trágica, que tiraria aquela família — minha vó e seus quatro filhos — do rumo para sempre.

O suicídio do meu avô, assim como a prisão do meu pai durante a ditadura militar, eram assuntos enterrados, embora não encerrados. Pairavam no ar, mas não se falava sobre. Havia uma pedra em cima do tema mais tabu de todos, a morte de alguém que se mata. Mas ainda que não se fale e não se enlute, a coisa fica lá, pendurada numa corda invisível, balançado sobre nossas cabeças. Qualquer pessoa que tem um suicida na família sabe do que estou falando: o fantasma que ronda, o medo de sermos iguais, o pavor de um segundo raio cair no mesmo lugar.

É mentira que só sei isso sobre meu avô. Sei também que ele tinha apenas 1,58 e que se chamava Lázaro Rubin de Toledo. A minha altura, o meu sobrenome. A história que me contaram é de que ele se matou porque seu negócio, uma fábrica de óleo de amendoim, da qual ele era sócio, faliu e ele se viu incapaz de sustentar uma família.

A história deve ser mais longa e complexa. Quem sabe dos medos que ele tinha? Sua estrutura psíquica, sua forma de enfrentar a vida? Talvez minha vó soubesse algo. Infelizmente, até onde me contaram, ele não deixou bilhete, nota, carta, explicação.

Recentemente, meu marido recebeu uma herança inusitada. Sua tia chegou aqui em casa com a cópia de um livro que o tataravô dele escreveu contando, justificando minuciosamente, porque matou um cara. É sua peça de defesa, algo que ele escreveu para deixar para os filhos, netos, família, para que entendessem suas razões.

Imagina a sorte de receber um livro escrito por um antepassado? Ele disse que o livro é chato de ler, mas ao contar a história do crime, retrata também o cenário da Bahia do começo do século 20, do Recôncavo Baiano, onde ele matou o cara, até o sertão, onde ele passou o resto da vida se escondendo (espero que meu marido escreva sobre o livro um dia).

Meu avô não deixou nada. Só uma tristeza fundamental cravada em nosso DNA que ultrapassa o tempo e atravessa as gerações.

Vovó Conchita

Da minha vó, sim, guardo lembranças. Ela viveu até meus 24 anos, quando eu estava na Espanha, atrás de alguma pista sobre quem sou. Ela, a vó Conchita (Conceição) era filha de espanhóis. Fui para passar um mini sabático em Barcelona (que não tem nada a ver com as origens da família), em uma das viagens mais importantes da minha vida. Um dia, ao abrir minha caixa de e-mail na sala de computadores da escola de espanhol (whatsaap era um sonho distante), recebi duas mensagens contando que minha avó tinha morrido, uma da minha irmã mais velha e outra da minha irmã mais nova. As duas diziam o mesmo: que bom que você não estava aqui. O enterro teve desfechos trágicos.

E que bom que me diverti nos três meses na Espanha, porque lá eu não achei nada sobre o passado que existiu antes de mim. Não precisava ter ido tão longe: minha história, minhas origens, meus fantasmas estavam a uma hora de casa, em Sorocaba, cidade onde meu pai nasceu e cresceu e de onde sempre tentei fugir. Uma hora a mais pela Castelo e eu já estava em Conchas, a cidade da minha mãe, onde eu preferia me refugiar.

As idas para Sorocaba eram sempre tensas e tristes. Meu pai claramente não gostava do rolê obrigatório de data familiar. O apartamento onde minha avó morava com minha tia e minha prima era imenso para os padrões dos imóveis modernos. E, ainda assim, claustrofóbico. Minha tia sentava na ponta do sofá e acendia um cigarro atrás do outro. Meu pai andava de um lado para o outro e acendia um cigarro atrás do outro. Tenho, até hoje, camadas de fumaça de Free impregnadas no meu corpo.

Minha vó se sentava em sua poltrona e assistia Silvia Santos sem prestar muita atenção — meu pai odiava Silvia Santos. E Roberto Carlos. Os olhos caídos, azuis e tristes de minha vó ora olhavam a tela ora olhavam a gente. Ela sorria um riso tímido, sem força, mas sincero. Ela gostava da gente lá.

Vovó Conchita y yo, acho que em 1980

Minha mãe sempre ia para a cozinha adiantar as coisas, dar uma ajuda. O cardápio era sempre o mesmo, o mesmo de tantas famílias brasileiras aos domingos e feriados: macarrão e frango no forno. Minhas irmãs, não sei o que faziam. Na época não tinha celular para se distrair.

Eu me refugiava na lavanderia, onde tinha a vista mais bonita do apartamento. De lá eu via o céu caindo sobre Sorocaba, um longo horizonte que me fazia viajar para o futuro. Um futuro lindo, com uma família desejada, com a profissão dos meus sonhos, em uma casa onde todos estivessem felizes em estar. Eu sempre fui muito boa em desenhar futuros.

De vez em quando tinha um dos meus primos mais velhos, o que dava uma animada. A Lu sempre foi muito amorosa com a gente e era uma presença alegre. O Claudinho, irmão dela, fazia umas brincadeiras que distraiam e animavam. Uma vez a gente estava assistindo a São Silvestre e ele abriu a porta e disse: gente, tô atrasado, vou lá correr em São Paulo. Fechou a porta, sumiu por um tempo e depois voltou arfando, dizendo que a prova era muito difícil. Eu, criançona, quase acreditei! E morri de rir depois.

Não me despedi da minha vó. Nem me lembro de quando foi a última vez que fomos para Sorocaba em datas festivas. E, para falar a verdade, também não sei muito sobre ela. Nada sei de Lázaro e pouco sei de Conchita. O que sei é que eles estão aqui comigo, presentes em forma de herança corpórea e um bololô de sentimentos. Até hoje foram uma presença pesada. Não precisa mais ser.

Vô, vó, eu espero que vocês estejam bem. Um beijo.

Meu pai

Depois que escrevi, pedi para meu pai contar sua versão. Ele está com 78 anos, e me mandou uma mensagem de áudio contando assim:

“A gente não tava vendo desfile, não, não era isso. Acho que nessa idade eu ainda não via desfile. Ao menos não me lembro disso. A gente tava na rua de casa mesmo, rua Pereira da Rocha, que era bem legalzinha. Tinha um detalhe interessante: nossa casa era a única que tinha um telefone na rua, então vivia cheia de vizinho lá. Minha mãe visitava muito as vizinhas da rua, algumas mais, e nesse dia ela tava na casa de uma delas, e já tava com indício de que ele ia fazer isso. Ela tava meio que esperando. Não sei porquê, mas havia indício. A gente tava brincando, eu e minhas irmãs, a caçula bem pequeninha, quando alguém bateu forte na porta, chamando por ela, para ir logo. Acho que tiveram que arrombar a porta, tinha uma tramela bem forte. Ela sai na frente e a gente meio que grudado na saia dela. Ela abre a porta, vê a cena com mais claridade e já fecha a porta desesperada, virando o rosto. Eu vi um vulto balançando. Não sei se o que minhas irmãs viram. Depois que concluí o que era. Aí fomos levados para a casa da minha tia Adélia, uma pessoa excepcional de boa, cunhada da minha mãe. Meu pai não era espanhol, não. Minha vó (mãe dele) era muito bonita, conhecida por sua beleza. A primeira falência foi do meu avô, tinha uma boa fortuna em Socorro. Depois de tentar várias coisas por lá, foi para Sorocaba. Não tenho muitas fotos, fui perdendo nas mudanças. Depois te conto mais”.

Ele encerra o áudio e me manda um link de youtube com um clipe de um músico de Campinas que ele acaba de descobrir e está pirando. Meu pai é assim, multitarefa, acelerado, capaz de relembrar a morte do pai e ver um vídeo fofo ao mesmo tempo. Ou de fugir de assuntos duros. Ouço a música que ele me mandou enquanto termino esse texto. Também sou multitarefa. Não fujo de assuntos duros.

Afinal, qual é a versão verdadeira?

Decido manter a primeira parte do texto tal como estava e deixar a versão do meu pai (incompleta, ainda espero por mais áudios) porque isso é uma das coisas que mais gosto do meu trabalho como biógrafa: comparar as diferentes versões. Ninguém está mentindo, as pessoas se lembram das coisas de formas distintas e, ao passarem adiante, algumas coisas se perdem, outras ganham contornos, algumas são adicionadas. A memória deixa coisas para trás e, ao final, o que sobrevive é a narrativa.

Talvez por isso o tataravô do meu marido escreveu ele mesmo seu livro: para que a história fosse contada exatamente do jeito que ele queria.

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