MENritocracia

Ou só “vence” na vida quem não lava a própria privada

Débora Rubin
6 min readMay 19, 2020
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O último domingo foi um dia histórico: meu marido lavou o banheiro pela primeira vez em 35 anos de vida. Longe de querer expor meu amor ao ridículo, pelo contrário, a intenção aqui é prestar um serviço à humanidade ao apontar o que essa longa quarentena vem jogando nas nossas carinhas brancas de classe média; que enquanto o homem não assumir as tarefas domésticas, estamos longe, estratosfericamente longe, de ter alguma igualdade de gênero.

E eu digo alguma porque não temos quase nenhuma. A entrada da mulher no mercado de trabalho foi, nesse sentido, a maior ilusão vendida ao nosso gênero nas últimas quatro décadas. Achamos que com o acesso à faculdade e ao mercado de trabalho já tínhamos resolvido isso aí. Só esquecemos de um detalhe muito importante: para que nós, mulheres brancas de classe média, pudêssemos estar lá brigando por nosso lugar ao sol, um sol masculino e patriarcal, outras mulheres precisariam nos cobrir na vida doméstica. Mulheres, na maioria das vezes, negras.

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Com a pandemia do coronavírus e o consequente isolamento social, muitas dessas, de bancárias a executivas de alto escalão, perceberam a cilada. Antes deste cenário atípico e apocalíptico, já eram elas que faziam todo o manejo mental da administração familiar. Uma vez em casa, com seus maridos e filhos, somou-se a esse cuidado o trabalho braçal em si: a comida, o banheiro, varrer a casa e passar pano, limpar os vidros, os espelhos, lavar a roupa, tirá-la do varal, colocá-la na gaveta e muitos etc. porque, sabemos, esse serviço é ingrato, posto que completamente invisibilizado, e sem fim.

Mulheres de direito

Também no domingo, o dia histórico em que meu marido limpou o banheiro pela primeira vez, li a coluna da Ombudsman da Folha, Flávia Lima, que faz um excelente trabalho no cargo. Ela conta a avalanche de mensagens de mulheres que o jornal recebeu por causa de uma matéria feita durante a semana com homens graúdos do direito e suas “incansáveis vidas na quarentena”. É que além de fazerem todo o trabalho de tribunais e afins, eles ainda conseguiam se exercitar, ver séries e até beber vinho! Incrível, não?

“Que mulher teria tempo para isso? Não sabemos. A reportagem ouviu quatro homens, sendo que apenas um deles parece ter de lidar com filhos pequenos e cuidados com a casa.” — diz Flavia num trecho. Eu completo de uma forma uma pouco mais grosseira: quem estaria limpando a privada onde eles defecam todos os dias, uma vez que suas domésticas e diaristas estão afastadas (se é que estão afastadas)? Pois, suas esposas ou coisa parecida. E leia por coisa parecida: alguma mulher.

Fora o fato de, como diz uma das leitoras, a Folha achar que o mundo do direito é masculino quando, segundo a OAB, 49,7% dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil são mulheres. Fiquei fantasiando com a cena de uma desembargadora jogando um espanador de pó na cabeça do marido juiz enquanto ele reclama que não tem tempo nem para tomar seu vinhozinho.

Na alegria e na faxina

Voltando ao meu caso. Eu e meu marido estamos juntos há quase nove anos, sete morando juntos. Ele gosta de cozinhar e, assim, assumiu o comando deste cômodo movimentado que é a cozinha. É ele quem faz compras, lava louça, limpa a cozinha e faz as refeições mais complexas (eu não chego perto de uma panela de pressão). Como ele tem trabalhado muito mais que eu, tem um emprego fixo e um doutorado em reta final, acho justo que eu faça mais serviços domésticos que ele neste momento.

Ele mesmo, no entanto, vem notando que esse mais é bem mais. Porque ao trabalhar em home office e sem a nossa faxineira semanal, ele se deu conta de que há muito mais superfícies empoeiradas entre o teto e o chão que supunha sua vã filosofia. E que a máquina de lavar não para de trabalhar. E que é preciso pensar em duas refeições por dia.

Foi ele quem se ofereceu para lavar o banheiro no fim de semana, o que me deixou muito feliz. Me liberou para faxinar outras coisas (risos tensos). A cada tanto de tempo ele gritava alguma pergunta: com o que eu lavo o espelho? E o azulejo do box? E o box? Quando terminou, estava exaurido, quebrado.

- Quanto tempo eu passei só no banheiro?

- Umas duas horas.

- Eu estou exausto, minha lombar não presta mais! Posso recolher INSS por essas horas de faxina? Por que se paga tão pouco para as faxineiras?

Ahá! Nada como a experiência.

- Pois é, meu caro — disse eu, já preparando o discurso — porque quem legisla não vivencia o que legisla. E porque o trabalho doméstico é dos mais desprezados e invisíveis que existem.

Eu e ele somos de classe média e crescemos em casas com empregadas todos os dias. Mesmo assim, lavei muito banheiro ao longo da vida. Foi aí que me dei conta de que aquele era um marco histórico.

-Você nunca tinha lavado um banheiro antes?

-Nunca. Nunquinha.

-Nem quando a empregada da sua casa tirava férias?

-Não.

-Nem quando viajava para a casa de algum parente? (Eu super lavava banheiro na casa da minha tia, no interior).

Não.

-Nem quando alugou uma casa na praia ou quando morou com seus dois amigos?

Nunca. Porque sempre houve uma faxineira. Ou uma mulher da família que ia lá e fazia o serviço. Eu cresci com duas irmãs; ele, com o primo-irmão. E isso diz muito sobre como meninos e meninas são criados.

A falácia da meritocracia

Isso tudo me fez pensar numa frase ouvida por um entrevistado recentemente (Fábio Luís Franco, psicanalista e filósofo que pensa muito o mundo do trabalho e fala também sobre necropolítica, dois temas mais que pertinentes no momento — pesquisem, vale a pena!). Ao citar outra pesquisadora, uma socióloga chamada Ludmila Abílio (que fez uma pesquisa com revendedoras da Avon e Natura e foi uma das primeiras a falar sobre uberização), ele me disse que a meritocracia só é possível entre homens brancos.

Afinal, como falar em mérito quando as mulheres passam uma boa parte do tempo administrando e cuidando da vida familiar? Como falar em meritocracia quando são as mulheres negras que ficam com os trabalhos mais difíceis e menos reconhecidos?

Os homens brancos podem brincar de meritocracia e seguir dominando os grandes cargos na iniciativa privada e pública — e, assim, decidir sobre nossas vidas, sobre nosso tempo e sobre nossos corpos — porque tem uma mulher limpando sua privada. A meritocracia, hoje vejo, não é um substantivo feminino: é masculino.

Comandamos? Não. Isso ainda é só uma frase de camiseta.

Ter uma grande força de trabalho feminina não significa que vencemos. Significa apenas que nossa mão de obra foi necessária e, por isso, absorvida de forma precária. Piores trabalhos, cargos inferiores, salários menores. A gente só vai ter tempo de transformar o mundo do trabalho — feito por e para homens — em um ambiente mais feminino, e de se apropriar das esferas de poder e assim legislar, enfim!, em causa própria, quando os homens assumirem o trabalho doméstico — e não uma outra mulher.

No dia em que juiz, deputado, professor universitário, presidente de empresa e os coachs, que me enchem a paciência com vídeos de motivação no YouTube, limparem suas próprias privadas e lavarem suas cuecas, aí a gente conversa sobre mérito.

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