Maria Cristina, a nova feminista

Débora Rubin
5 min readJul 6, 2020

Maria Cristina teve uma iluminação enquanto limpava a privada do banheiro de número três do seu apartamento de 120 metros quadrados na Vila Leopoldina. “Rita é uma santa! E Zefa merece uma estátua!”. Rita, a babá-empregada-faz-tudo que trabalhava com ela fazia cinco anos, desde o nascimento do Leozinho, e Zefa, a diarista duas-vezes-por-semana, haviam sido dispensadas ao primeiro sinal do surto do coronavírus. “Estão sendo devidamente pagas”, se apressa em dizer ao telefone com as amigas.

Desde que suas funcionárias foram dispensadas, é Maria Cristina, uma brilhante advogada de 38 anos, com mestrado na Fundação Getúlio Vargas e especializada em direito tributário, quem cozinha, lava a louça, limpa os banheiros, varre a casa e passa um pano úmido com “um tiquinho de Ajax diluído na água” (conforme lhe orientou Zefa por telefone), tira o pó dos livros e das estantes, põe a roupa na máquina, tira a roupa da máquina, põe a roupa no varal, tira a roupa do varal e, ufa!, passar é a única tarefa que ela se recusa a fazer. E nem daria tempo. É ela também quem acompanha a escola de Júnior, oito anos, e do pequeno Leozinho, que ainda não sabe ler, mas recebe tarefa mesmo assim.

Cabe a Douglas, 43 anos, advogado mediano, porém cheio de bons contatos, marido e sócio de Maria Cristina no escritório, sair de duas a quatro vezes por semana em seu Honda Touring Turbo (cujo vidro traseiro ostenta sua convicção no adesivo “Eu apoio a Lava Jato”) para comprar os víveres, o que inclui caixas e caixas de cerveja. O dia a dia escolar dos meninos também deveria ser dele, mas Júnior e Leozinho, acostumados com a presença da mãe nos assuntos de escola, protestaram e alegaram que, abre aspas, a mãe era bem mais inteligente, fecha aspas.

Douglas passa os dias úteis trancado no escritório das 10h às 18h, de onde Maria Cristina ouve gargalhadas e, às vezes, alguns gemidos. Abre a porta sob o pretexto de fazer a hora do almoço às 12h30, e chega a se mostrar irritado, até mesmo indignado, quando a comida ainda não foi servida — ou pedida, já que Maria Cristina nunca foi muito dada às coisas d’fogão. A mulher da casa, por sua vez, resolve as coisas do escritório pelo celular enquanto espana, lava, cozinha, grita com Leozinho e põe o lixo para fora. No 13º dia de quarentena, ensinou Júnior a tirar os lixos e colocá-los para fora (“Eeeecaaa!!”) e Leozinho a regar as plantas. Passou a virar madrugadas escrevendo petições e acordos extrajudiciais.

Aos finais de semana, Douglas lagarteia-se no sofá e vê vídeos em série no YouTube. Quando se cansa, pega o joystick e começa a jogar GTA no PlayStation 4. Júnior se queixa — Me deixa jogar, pai! E o pai responde — Poxa, trabalho duro a semana toda, deixa o papai jogar um pouquinho. E o menino faz biquinho e chama manhêee pela décima segunda vez no dia.

No 26º dia, Maria Cristina decidiu reservar uma horinha só para ela: desenrolou o tapetinho da ioga, tirou o pó, ligou no canal do YouTube e começou a prática. Quando estava na postura do cachorro olhando para baixo, viu o que nunca tinha visto antes — o universo que existe debaixo de um sofá em uma casa com crianças. Carrinhos misturados com pecinhas de Lego em meio a bolinhos de papel higiênico e pó, muito pó. Deu pause, guardou os brinquedos, varreu, passou o pano. Voltou à postura. Ao final da aula, quando ia iniciar a invertida, Leozinho irrompeu num choro desgraçado gritando o nome do algoz, o irmão mais velho. Eu odeio o Júnior, eu odeio o Júnior, e lá foi Maria Cristina tentar ser justa na sempre belicosa briga de irmãos.

Quando já fazia quase dois meses que a família estava confinada, Maria Cristina fez contas — contas que Douglas deveria ter feito no seu expediente das 10h às 18h — e ficou preocupada. O escritório era pequeno, a maior parte dos trabalhos estava paralisada e se aquela situação se prolongasse por muito mais tempo, não haveria caixa para pagar os funcionários e o aluguel do espaço de trabalho deles — uma sala de 100 metros quadrados em um coworking em Pinheiros. Insistência de Douglas, que achou que seria muito cool receber os clientes num coworking, embora 80% dos clientes da Melo Prado Pontes Gomes fossem senhores com mais de 70 anos. Os outros dois sócios (Pontes e Gomes) estavam pressionando: era hora de apertar os cintos.

- Vamos vender o Hon…

- Não vou vender meu carro.

- Então vou vender o meu, sugeriu Maria Cristina.

- Não vamos vender nenhum carro!

E esse diálogo se seguiu por dias, até que Douglas sugeriu:

- Vamos demitir a Rita! Você se virou super bem nesses dias, não foi?

Rita morava em Carapicuíba (longe para caramba dali) e pegava o trem lotado até a Leopoldina todos os dias. Tinha dois filhos tão pequenos quanto os de Maria Cristina, que deixava com uma vizinha, e trabalhava na função dupla babá-empregada porque ter um trabalho CLT era uma benção e ela não queria se queixar.

- Você está completamente doido, né? Primeiro, não se esqueça que eu trabalho com você no escritório. Segundo, Rita deveria ser elevada à categoria de santa, deveria receber o dobro do salário. Douglas, Rita é minha heroína!

Foi nesse dia, o 56º dia, para ser mais precisa, que Maria Cristina começou a se perguntar o que tinha visto em Douglas. Quando havia se apaixonado por ele?

Quando a quarentena, enfim, acabou, Maria Cristina, com as malas prontas na porta do apartamento, anunciou ao marido e filhos: renuncio! Renuncio do meu cargo! De mãe, de esposa, de empregada doméstica. Fique com os meninos, e fique tranquilo que eu não quero a guarda. Venho buscá-los aos finais de semana para levá-los ao parque, ao cinema, para tomar um sorvetinho… adiós! Colocou uma máscara vermelha na cara e saiu.

- Por que a máscara, meu amor, acabou a quarentena — disse o marido, ainda achando graça naquele drama todo.

E antes que ele se desse conta de que era verdade, antes que percebesse o tamanho da fúria de Maria Cristina, antes que visse pela TV a mulher marchando ao lado de Rita na Paulista, em meio a milhares de mulheres com máscaras vermelhas, enfurecidas com a desigualdade do trabalho doméstico, clamando por um novo mundo pós-vírus, um mundo que não fosse mais governado por um exército de Douglas, ele virou-se para os filhos e perguntou:

- Meninos, vocês sabem onde a mãe de vocês guarda as toalhas?

--

--