Glote

Débora Rubin
3 min readJun 30, 2022

Nem sempre as coisas precisam sair da garganta

Era uma vez um livro que nunca ficou pronto. Ele foi parido em 2014, logo após uma crise de pânico que, como muitos acontecimentos da vida, dividiu a minha entre antes e depois. Ele nasceu de um grito entalado na garganta, todo o lixo que atravancava a glote quis sair e eu obedeci. Paralelamente ao trabalho feito na terapia, eu ia colocando no papel as dores que tinham sido acumuladas. Era, no fundo, um grande diário com ideias desordenadas que fotografavam um momento — da minha vida e do país onde minha vida se desenrola. Afinal, em 2014 as coisas começaram a ficar bem estranhas no Brasil.

O problema é que tinha um monte de coisa ali que não podia ser dita nem em voz alta, menos ainda registrada em livro. “O quadro que não se pode pintar”, ventilava minha Nossa Senhora das Graças, no caso, a Graça, minha terapeuta, toda vez que eu falava desse projeto de livro. Segundo minha psicóloga reichiana, há coisas que não precisam ser ditas, há sentimentos que nem mesmo a arte sublima.

Aí começou a derrocada daquilo que nem tinha começado. Fui enfiando umas ficções mal disfarçadas, umas trocas tolas de nomes como Silvia e Silvana, um fio condutor muito forçado para que alguma coisa acontecesse naquela narrativa que, no fundo, não passava mesmo de um diário muito pessoal.

Passei para algumas pessoas lerem e, tirando uma amiga generosa que gosta muito de tudo o que escrevo e que acha importante reflexões feitas por mulheres, o quase livro não gerou um cisco de empolgação. Era uma narrativa que queria contar coisas fortes mas que, ao não se revelar com suas cores reais, virou um arremedo de ficção. Um romance capenga, uma prosa mal contada.

Photo by Clay Banks on Unsplash

Os anos foram passando. Fiz o tratamento psiquiátrico, continuei na terapia e aquela angústia passou (outras vieram depois, mas já estava melhor preparada para lidar com perrengues). Paralelamente, o país foi colapsando: veio o golpe, a direita a galope, o presidente que eu gostaria de esquecer. E eu achava genial a ideia de costurar a história do meu colapso com a do colapso da nação. Só faltou talento ao fazê-lo. Ou talvez a Graça tenha mesmo razão e há quadros que não podem ser pintados. Ou os dois.

O fato é que eu passei sete anos mexendo nesse texto acreditando que algo ali poderia ser aproveitado. SETE ANOS. Poderia ter escrito um clássico, produzido uma série infantojuvenil cinematográfica, cinco volumes de uma heroína chick-lit erótica. Eu poderia ter escrito qualquer outra coisa, mas insisti. Em busca do tempo perdido e na fé cega de que Glote ainda seria um sucesso, tirei a parte do vilão familiar para não me comprometer, saquei toda a ação, que gerava um mínimo de suspense na história, e cortei uma meia dúzia de personagens. Ficou ainda mais parecido com um simples diário preenchido de pensamentos desconexos. “Nada acontece”, me disseram dois leitores-beta. Desisti. Recolhi-me a minha insignificância. Glote é o livro que nunca escrevi.

Não sou romancista, sou péssima ficcionista e, com sorte, se praticar bastante, talvez um dia eu seja uma boa memorialista. Como ganha-pão eu escrevo livro para os outros e é muito mais fácil escrever as histórias dos outros. O quadro é deles; eles que decidam se pintam ou não. Eu só executo.

Ao menos não foram sete anos de solidão. Ou melhor, não foram sete anos em vão. O livro foi minha terapia e, enquanto me digladiava com ele, ia escrevendo outras histórias que brotavam em noites de insônia e em dias de fúria, ócio ou tédio. São histórias do ego, do alter ego, do super ego e até do ego dos outros. São sete anos de histórias que decidi agrupar em um pequeno e-book para meu público pequeno e fiel (um beijo para você, Gabriel!). Algumas foram escritas durante os dois longos anos de pandemia do coronavírus.

De Glote restou apenas uns dois ou três contos no meio deste livro de contos, e que talvez você saque quais são. Ou não. E tudo bem. Há coisas que podem ficar dentro da gente para sempre.

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