Dias com Carmen

Débora Rubin
8 min readJan 20, 2021

Um texto sobre minha avó, sobre afetos e sobre ser mulher nesse mundão machocentrista

Ilustrações feitas com muito carinho por Nicolas Nasser

Quando eu nasci, minha avó tinha 42 anos. Com 42 anos serei mãe pela primeira e, provavelmente, única vez. Somos duas mulheres muito diferentes de uma mesma família. Em comum, além do sangue, o signo (gêmeos) e pés grandes: ela calça 39, eu 37, mas sou mais baixa que ela. No mais, somos duas estranhas uma para a outra. Ao longo do último ano, ela começou a se esquecer das coisas. Nomes de filhos e netos, de coisas, de sentimentos. Horário do remédio. Como manusear o controle da TV. Depois de mais de um ano sem vê-la, comecei a ficar com medo de me tornar uma completa estranha para ela. Decidi que era hora de visitá-la.

Minha avó mora no interior de São Paulo, em uma cidade chamada Conchas. Com a pandemia, as poucas visitas aos nossos idosos viraram nenhuma. No começo de 2020, pouco antes de o coronavírus se tornar uma onipresente realidade entre nós, minha mãe se mudou para a casa da mãe dela já atenta aos cuidados que minha avó começava a demandar. Passei nove meses sem ver as duas. Já grávida de quase quatro meses, aproveitei a carona da minha mãe, que foi a São Paulo votar, e fui, enfim, ver a vovó.

Dona Carmen, 83 anos, é uma mulher forte. A despeito da desmemória e da coleção de dores pelo corpo, uma queixa antiga, de quando ela ainda sequer era idosa, tem uma estrutura física que não lembra a de uma mulher de mais de 80. Viúva desde os 63, vive sozinha em uma casa grande onde já morou uma multidão de filhos. Passou dos 18 anos até 30 e tanto parindo. Minha mãe é a mais velha de oito; a nona filha, uma menina, morreu pouco depois de nascer.

Assim que chego, ela faz festa: cadê a barriga, cadê bebê? Fico feliz por ela estar lúcida e saber quem eu sou e que estou grávida. Fica decepcionada quando vê que a barriga ainda é a de gordura e não de gravidez — ela me chama de gorda com uma frequência alucinante. Celebro, minha vó ainda não me esqueceu! Duas horas depois, no entanto, ela pergunta quem é minha mãe. Aponto para o vulto que se mexe dentro da casa — ela, a Vilma, sua filha mais velha. Você é filha da Vilma? Ah, vá! Percebo que o hipocampo dela é como uma luzinha piscante de Natal.

Antes de começar a esquecer as coisas, minha vó já era de uma sinceridade desconcertante. Sempre falou tudo o que pensa sem considerar o sentimento alheio, não só para filhos e parentes, mas para vizinhos e conhecidos. Colecionou desafetos. Agora, piorou. Fala tudo sem filtros. Não é uma vovó clássica, fofinha, que assa bolinhos e mima netinhos. Minha mãe a chama de preguiçosa, e acho que minhas tias concordam. Acho injusto. Uma mulher que teve nove gestações e cuidou de tanto filho tem o direito de ser o que quiser, especialmente no final da vida.

Percebo que esse é um pensamento novo. Também já a achei preguiçosa, chata, pouco afetiva. Já tive mais sentimentos de descaso e impaciência com ela. Nessa uma semana com Carmen, começo a vê-la de uma nova forma. Talvez seja a gravidez, que me deixa mais mole e sentimental. Talvez seja o fato de ela estar indo embora com seu esquecimento. Não sei, mas sinto que estou aqui, pela primeira vez na vida, para estar com ela, para viver a vida dela.

Café da manhã e café da tarde fazem parte da rotina das minhas velhas

Nossa rotina começa com minha mãe preparando o café. Eu chego na cozinha logo em seguida. Meia hora depois, ela chega com seu vestidinho de viscose de ficar em casa. Todos os dias diz a mesma coisa: puxa, se eu não ouvisse vocês conversando ia dormir até às 10h! Pega o pãozinho dela no forno, recheia de geleia (goiabada derretida pela minha mãe) e come quietinha. Depois ela vai para o quarto dela, ajeita os lençóis e se senta na beiradinha da cama, perto da mesa de cabeceira. Não sei se reza ou se fica ali perdida em pensamentos. Depois fica zanzando pela casa sem saber bem o que fazer. Minha mãe preencheu todos os cômodos e as atividades: cuida da limpeza, das compras, da comida.

Católica, sua casa é cheia de santos, cruzes e referências religiosas. O São Benedito da cozinha é o mais mimado: toma café novo todos os dias, duas vezes por dia — se minha vó se esquece de trocar, minha mãe se lembra. Vovó gosta de ir à missa com minha mãe, o que ficou em suspenso durante os primeiros longos meses de pandemia. Quando o serviço religioso voltou, minha mãe passou a agendar o lugar delas na igreja com dois dias de antecedência.

Decido tomar sol no quintal para compensar os nove meses que passei trancada num apartamento em São Paulo. Passo por ela de maiô, com a bunda de fora, e ela se queixa: fica pelada logo! É de um moralismo estrutural, mais por ser uma mulher de seu tempo que por convicção. Coloco um som para ouvir enquanto lavo a louça e começo a rebolar. Ela me repreende: tenho pena do seu bebezinho, você não para quieta! Ela fala, mas fala rindo. No fundo, me acha divertida e segreda a minha mãe que gosta de mim aqui.

Nos reunimos de novo na hora do almoço. Minha vó não é de falar muito nesses momentos de sociabilidade. Eu e minha mãe conversamos, ela tenta acompanhar. Não sei o quanto capta. À tarde as duas dormem. Minha mãe capota na cama dela, minha vó, no sofá. Tó, a gatinha preta que ela adotou e que ganhou esse nome porque “você diz ‘tó’ e ela vem”, dorme na barriga dela. Com a casa em silêncio, pego o computador e trabalho. Se paro para descansar um pouco na rede e ela acorda nessa hora, me pergunta se já acabei meu trabalho. Digo que não, que meu trabalho nunca acaba. Que bom, diz ela, e sai em busca de alguma ocupação qualquer.

A sesta da vovó é sagrada

Carmem foi costureira. Sua máquina de costura continua instalada no quartinho onde ela trabalhava. Seu marido, meu avô João Manduca, era alfaiate. Uma casa de linhas, agulhas, tecidos, tesouras e fitas métricas. Não puxei nenhum deles, não sei pregar um botão. Embora tenham tido a mesma profissão, minha avó tem muito claro na cabeça dela que mulheres não nasceram para certos ofícios, nem para ocupar lugares tradicionalmente ocupados por homens. Não gosta da neurologista dela, por exemplo, só porque é mulher. Médico, para a dona Carmen, tem que ser homem.

Criada na roça, com mais 15 irmãos, estudou até o segundo ano do (hoje) fundamental. Casou-se cedo, passou a vida tendo filho e nunca viu o mundo para muito além da sua pequena cidade. Tem uma dificuldade imensa em entender que mulheres podem ter outra vida que não a que ela teve. Dos oitos filhos, quatro são homens e quatro mulheres. Dos dezoito netos, nove varões, nove mocinhas. Com todo respeito aos meus primos homens, a ala feminina arrasa.

Somos nós as guerreiras, ousadas, criativas, batalhadoras, idealistas, solidárias. Mesmo assim, são eles, os garotos, quem minha vó celebra. Minha irmã mais velha pode ser executiva de empresa, minha prima, uma multitalentosa profissional de marketing, a outra passou nos vestibulares mais difíceis do Brasil; mas ela só elogia os meninos. Para eles, bastou nascerem homens, e tudo o que fizerem vai ser lindo. Nós tivemos que ir além - mas não seremos reconhecidas pela matriarca. Minha família é um pequeno retrato da sociedade brasileira.

Minha avó nunca celebrou nenhum livro meu, nenhuma conquista profissional, como vibrou com a notícia da minha gravidez tardia e inesperada. Uma prova do quanto ela acredita que o lugar da mulher é esse que lhe foi ensinado, o doméstico, o do cuidado com o outro, e o da invisibilidade social. Minha mãe conta que toda vez que ela sabia de alguém grávida de menina, suspirava e lamentava: mais uma para sofrer no mundo. Para ela, ser mulher é isso, sofrimento e inferioridade.

Quando o relógio marca 16h30, minha mãe já está na cozinha fazendo o café da tarde. E nós três nos reunimos mais uma vez na cozinha. Fim de tarde é a hora de caminhar pela cidade, com o sol já baixo. Minha vó já não caminha mais, tem medo de sair de casa, está cada vez mais reclusa. Passa horas sem fazer nada. Depois do banho, já com a noite adentro, começa a parte do dia que ela mais gosta: ver TV. Se entope de programas policialescos que, não à toa, a enchem de medo e fazem com que ela tranque a casa toda, mesmo morando em uma cidade tranquila.

Dona Carmen é telespectadora cativa do seu Silvio

Depois começa seu programa favorito: Roda a Roda Jequiti. Ela se diverte com as pobres consultoras do Silvio Santos errando as palavras num looping infinito de reprises do tedioso quadro apresentado por uma das filhas do patrono do SBT. Minha mãe tricota ao longe e, mesmo sem olhar a TV, acerta as palavras. Depois, vovó tenta acompanhar a gente na série The Crown, mas ela não lê legendas e se cansa logo. Toma seus remédios para dormir e diz boa noite.

Em 2012, lancei meu primeiro e único livro infantil (uma frustração que carrego comigo, a de não ter conseguido publicar os outros que escrevi), uma homenagem aos meu avô. Em “A Horta do Vovô Manduca”, minha avó é uma mera coadjuvante. Este texto talvez seja uma forma de reparar essa injustiça.

Depois de uma semana em Conchas, vejo minha avó e seus cabelos branquinhos como algodão de um jeito novo e mais generoso. No fundo, sua personalidade sincericida e desbocada não combina com tanto moralismo, catolicismo e machismo. Mas que escolhas ela teve? Ela nasceu em 1937, no interior do interior, em uma família imensa. Não pôde escolher um caminho, apenas seguiu. Eu nasci em 1979 e, apesar de ter sempre que me esforçar mais que meus pares homens, eu pude escolher tudo: o que estudar, com quem transar, com quem me casar, decidir se e quando ser mãe. Eu sou uma privilegiada. E se estou aqui hoje, gestando uma nova vida dentro de mim, é porque outras vieram antes de mim, incluindo dona Carmen. No fundo, não somos tão diferentes. Ela é apenas uma mulher de outro tempo. Um tempo que não gostava muito de mulheres.

Ah, sim, e minha bebê é uma menina. Mais uma para brilhar nesse mundo.

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