Barriga

Débora Rubin
3 min readMay 29, 2023

Em homenagem aos dois anos da Pilar, um trecho de algo que ainda não sei o que é, se livro, diário ou longa carta, mas que ando escrevendo para ela ler no futuro

Debaixo dos caracois do teu cabelo tem um monte de histórias que ainda vou te contar

Primeiro teve aquele filho que não tivemos. Nem chegou a formar barriga. Foi como veio, num susto, e deixou uma tristeza amarga. Para chegar até aquele momento foi um tanto de conversa e terapia e confusão porque a gente queria, mas não queria, sabe como é? Sempre invejei as mulheres decididas, tanto as que sempre tiveram certeza de que seriam mães como as que sabiam que não seriam. Eu queria, mas tinha medo. Tinha medo de nunca mais ser nada além da palavra mãe. Tinha medo de ser pouco amorosa, fria, indiferente. Tinha medo de ser impaciente. Tinha medo de não dar conta. E de tanto temer cheguei a achar que tinha perdido uma gestação por causa do medo.

Daquele dia triste na maternidade, enquanto as barrigudas celebravam e eu chorava, até o dia em que enjoei com o cheiro do café se passaram mais de quatro anos. Quanta coisa aconteceu entre o não filho e a sua anunciação, minha filha. Quase que você também não vem por outras razões, quais sejam: 1) descobri ser portadora de endometriose aos quarenta anos, depois de 27 anos de cólicas incapacitantes, e precisei fazer cirurgia 2) seu pai e eu nos afastamos um pouco e quase nos despedimos para sempre 3) o avião da volta de Buenos Aires arremeteu três vezes e foi parar no Galeão debaixo de uma chuva bíblica 3) eu quase virei uma monja celibatária e reclusa depois da festa de 40 anos na qual nem minha mãe foi (e olha que ela gosta de festa, bastante) 4) não sei se já mencionei, mas houve uma pandemia, e todos achamos que poderíamos morrer 5) eu já estava com idade avançada.

Gestação geriátrica. É assim que chamam a gravidez de quem tem mais de 35. Sabe como se chama o cara que vai ser pai depois dos 50? Pai mesmo. O mundo é um lugar terrível com as mulheres. Pois minha gestação geriátrica foi uma das experiências mais incríveis que já vivi. Não teve pressão alta, diabetes gestacional, pré-eclâmpsia, sustos no ultrassom. Não teve dedo faltando, coração vacilando, pé inchando nem dias repousando. Comi bastante chocolate, como sempre, reduzi um pouco o café, beberiquei uns vinhos e alisei a pança sem moderação, como se o passar de mão a fizesse crescer. Virei uma baixinha barriguda tão metida que até shortinho sumário e top eu usei. Em São Paulo, onde ninguém usa shortinho. Me exibi ao te exibir.

Você morou dentro de mim durante vinte semanas em 2020 e vinte semanas e um dia em 2021. No meio disso, no período do ano novo, fomos para a cidade do seu pai lá na Bahia. Te contei sobre meu amor pelo mar, apesar de viver tão distante dele, e entrei na água com você. Naquele dia, um pouco mais tarde, você se mexeu pela primeira vez. E nunca mais parou — você é um dínamo que agora deu de rodopiar pela sala (danxando, mamãe, danxando).

Te fermentar a cada dia, produzir pé, mão, boca, dedinho do pé, unha por unha, te ver passar de feijão a melancia. Você fez da minha barriga a sua pista de dança particular, o palco para o bailado da menina que florescia. Gestar você me fez sentir uma potência, uma usina de desejos e sonhos, uma mulher maravilha plena de poderes, uma escritora com um livro pronto, publicado e aclamado. Você, minha filha, fez meu útero alquebrado e árido germinar poesia. Engravidaria mais um milhão de vezes, desde que não fosse preciso parir e viver na caverna do puerpério.

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